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sexta-feira, setembro 15, 2006

Saberes da Mundialização





Constantemente escutamos alguém falar sobre globalização. A palavra é utilizada para designar um processo típico da segunda metade do século XX que conduziu a crescente integração das economias e sociedades dos vários países, especialmente no que se refere à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros, e à difusão de informações e de culturas.
Dizer que a cultura está globalizada é dizer que ela ultrapassou as fronteiras do mercado local e conseguiu atingir outros nichos, outros países, mesmo que se afrontando. Mas, será mesmo que isso acontece? O que sabemos é que a disseminação da cultura globalizada tem influenciado os padrões de comportamento, provocando uma verdadeira ou falsa valorização da tradição e um fortalecimento dos regionalismos manifestos na identidade cultural. Nos últimos anos ela tem se fixado como uma construção social estabelecida e tem feito as pessoas se sentirem mais próximas, mas não semelhantes.
Vários autores escreveram sobre o assunto, a exemplo de Canclini, Castells, Featherstone, Giddens, Hall. Entre os sociólogos brasileiros estão Otávio Ianni (um dos maiores sociólogos brasileiro já falecido) e Renato Ortiz que evidenciam, em recentes estudos, que a atual fase da globalização vem provocando reações que buscam uma redescoberta das particularidades, das diferenças e dos localismos.
Para entender um pouco mais sobre este processo entrevistei o professor paulista Renato Ortiz, na tentativa de saber como se encontra hoje as discussões a respeito da globalização da cultura. Com um recente livro lançado pela Editora Brasiliense, intitulado “Mundialização, Saberes e Crenças”, o professor Ortiz comentou como surgiu seu interesse pelo tema, fala sobre a dificuldade das ciências sociais em abordar novas questões sobre a sociedade, faz algumas criticas ao monopólio da força da Organização das Nações Unidas (ONU), a institucionalização das pesquisas científicas e outros assuntos. Leia a entrevista:


Quando e como surgiu o seu interesse em estudar o processo de globalização da cultura?
Meu interesse pelo processo de globalização partiu inicialmente do Brasil. Eu havia terminado meu livro "A Moderna Tradição Brasileira", e no último capítulo, avancei a idéia de uma cultura "internacional popular". Ou seja, parecia-me impossível compreender um conjunto de aspectos da realidade brasileira limitando-se ao contorno de uma única nação. Isso levou-me a expandir minha compreensão sobre a modernidade, que agora adquiria uma dimensão mundial, e elaborar um projeto sistemático de estudo que redundou nos diversos livros que venho publicando desde então.

Quando o senhor e o professor Otávio Ianni começaram a discutir sobre globalização das sociedades e mundialização da cultura nas Ciências Sociais parecia que eram fenômenos distantes de nós humanos. Passado todo o impacto que os estudos provocaram na época, como é que o senhor observa nos dias atuais o processo da globalização e mundialização da cultura?
Comecei a trabalhar a problemática da globalização no final dos anos 80, e logo em seguida, Ianni também se interessou pelo tema. Sorte minha, nesses anos todos pudemos conversar e discutir sobre o mundo contemporâneo, suas transformações e dilemas. Ainda no início dos anos 90 iniciamos um seminário no Instituto de Estudos Avançados da USP, e ganhamos um interlocutor de peso, Milton Santos, que juntou-se à nós. Neste momento a problemática era ainda incipiente nas Ciências Sociais e muitos, sobretudo, à esquerda, acreditavam tratar de um simples fenômeno ideológico, carente de qualquer base material concreta. Digamos que de uma certa forma "nadamos contra a corrente".

As Ciências Sociais acordou de fato para a dimensão dessa realidade?
Sim e não. O sim pode ser avaliado no conjunto de reflexões que encontram-se materializadas em livros e artigos, e o digo, em escala mundial. O não, mostra quanto as Ciências Sociais têm dificuldade para abordar problemáticas novas, principalmente aquelas que implicam na renovação, pelo menos parcial, do quadro conceitual com o qual elas operam. O tema da globalização não é apenas um tema novo, ele requer a revisão de um conjunto de conceitos tradicionais da disciplina. Por exemplo: o Estado-nação. Não se trata de pensar o seu desaparecimento, isso é insensato, mas compreender criticamente, como as Ciências Sociais tomaram o Estado-nação como uma evidência para construir muitas de suas categorias de pensamento. Esta "evidência", hoje se esvaneceu.

Na sua opinião, como se encontra a pesquisa científica nas Ciências Sociais e Humanas?
No caso brasileiro é possível dizer que o desenvolvimento de um sistema de pós-graduação em escala nacional impulsionou a prática das Ciências Sociais de uma forma até então desconhecida. Ela se "rotiniza" (deixa de ser excepcional) e se institucionaliza permitindo que um conjunto de pesquisas possam ser realizadas. Possuímos hoje, devido à uma serie de estudos específicos, um conhecimento maior do que no passado a respeito de várias manifestações sociais. O desenvolvimento da Sociologia, Antropologia, Ciência Política, História, certamente contribuíram para isso. No entanto, as Ciências Sociais se especializaram demasiadamente. Perde-se assim uma visão de totalidade, que na prática, devido à uma certa taylorização do conhecimento, contenta-se com uma perspectiva parcial e fragmentária dos fenômenos sociais.

Durante a jornada multidisciplinar promovida pelo Departamento de Ciências Humanas da Unesp, em Bauru, no ano de 2002, numa de suas palestras, o senhor explicava que a globalização "não é um paradigma e nem era o fim da nação". Daria para o senhor explicar a diferença entre globalização e mundialização para os nossos leitores?
A globalização é um processo que define uma situação específica. Não se trata de um paradigma novo que substituiria um paradigma velho. Esta visão dualista nada traz de útil. Na situação de globalização o velho e o novo se manifestam, convivem, se complementam e entram em conflito. Neste sentido, não há porque imaginar o fim da nação. Como formação social ela permanece nesta situação, isto é, um contexto no qual suas forças e ambições são modificadas. Quanto à diferença conceitual que forjei entre mundialização e globalização, ela tem a intenção de distinguir diferentes níveis de um mesmo processo. A idéia de global refere-se à noção de unicidade: vivemos um único mercado global (o capitalismo) e um único sistema técnico. Mas não é possível dizer, vivemos uma única cultura global. Para exprimir esta diferença entre a dimensão econômica e tecnológica de um lado e a dimensão cultural de outra, preferi dizer: o processo de globalização tecnológica e econômica se associa ao da "mundialização" da cultura. Ou seja, existe um movimento de integração econômica, comunicacional, tecnológico em escala global, mas ele não configura "uma" cultura global, e sim um contexto no qual diversas culturas e concepções de mundo se afrontam. Dito de outra forma: a globalização não é sinônimo de homogeinização.

No meio de tantas guerras e distorções socais na sua opinião para que serve a construção dessa ordem internacional tão discutida pela Organização das Nações Unidas (ONU)?
Toda a discussão em torno da ONU diz respeito ao monopólio da força. Ou seja, quem possuiria a legitimidade de deflagrar conflitos armados em escala mundial. Há uma tensão entre a vontade do Estado-nação (por exemplo a invasão do Iraque pelos Estados Unidos) e uma instituição, constituída por vários estados-nação, cuja pretensão é arbitrar a ordem internacional. O problema é que a ONU é uma herança do início da guerra fria, ela privilegia os países que possuem o direito de veto e marginaliza os outros, inexistentes, do ponto de vista decisório,

Algumas pessoas falam bem da globalização/mundialização e outras mal de suas teorias. O que de bom e de ruim traz o processo de globalização/mundialização da cultura para sociedade?
Uma teoria não é nem boa nem má, a não ser do ponto de vista da compreensão dos fenômenos que procura explicar. A realidade é no entanto, outra coisa. No contexto da globalização existem certamente mais problemas do que virtudes. Ao se romper a ordem das coisas o mundo contemporâneo tem dificuldade em encontrar um caminho a ser trilhado. O futuro imaginado no projeto do Estado-nação, torna-se agora duvidoso. Neste sentido, vivemos uma era de maior incerteza e de pessimismo. Há ainda uma "ideologia da globalização" que se exprime particularmente nas propostas das grandes transnacionais, elas nos dizem que o mundo do mercado é o reino da felicidade e se esforçam em nos convencer de que tudo está bem.

A literatura da área mostra que o senhor é um dos poucos pesquisadores brasileiros que se dedica ao estudo e análises em torno de questões tais como modernidade e pós-modernidade, internacionalização, globalização e mundialização. Por que isso acontece?
Provavelmente porque acredito que não se possa mais explicar a realidade exclusivamente a partir de um ponto de vista nacional. As Ciências Sociais na América Latina têm uma obsessão pelo nacional, isso nos impede de pensar outras coisas.

Quais as conseqüências da globalização para as novas gerações?
É difícil de se avaliar. Elas certamente terão um horizonte de socialização mais amplo do que as gerações anteriores, imersas apenas nas realidade locais e nacionais. No entanto, elas terão também de enfrentar os problemas e os desafios que esta nova realidade impõem.

Quais as conseqüências da modernidade na produção cultural dos países de economia periférica?
Como podemos separar, de forma didática, as culturas "produzida pelas instituições governamentais" e a cultura que nasce e se recria nas feiras livres do interior deste imenso país.

Em pleno século XXI, as análises da Escola de Frankfurt ainda são válidas para separar as culturas erudita, popular de massa?
Os pensadores frankturtianos nos deixam um herança importante, a necessidade de pensarmos criticamente a sociedade e não nos conformarmos com as explicações correntes do senso comum e dos interesses particulares. Entretanto, é necessário compreender que este tipo de reflexão encontra-se vinculado à um contexto muito específico, a emergência da sociedade industrial de massa (particularmente nos Estados Unidos dos anos 40) que encontra-se hoje inteiramente modificado. A própria oposição entre cultura erudita e popular, dificilmente poderia ser trabalhada nos termos em que foi elaborada anteriormente.

O senhor considera que os intelectuais brasileiros estão afastados das manifestações de cultura popular?
A questão não é mais a distância entre intelectuais e cultura popular. O próprio conceito se transforma com o advento da modernidade industrial (trabalhei este aspecto em meu livro "A Moderna Tradição Brasileira") e a mundialização da cultura. A questão é saber de que cultura popular estamos falando.
Adriana Crisanto