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quarta-feira, janeiro 28, 2009

A Ciranda Mourisca de Alceu Valença



Para bem comemorar os seus 35 anos de carreira artística e cultural o pernambucano Alceu Valença lançou na última semana, em Olinda (PE), o CD lado B de sua carreira intitulado, “Ciranda Mourisca”, pela gravadora carioca Biscoito Fino (que em breve poderá ter uma sucursal, digamos assim, do selo gravadora no Nordeste).

Na última sexta-feira (23 de janeiro) o cantor ao lado de sua esposa, Yanê Montenegro, do produtor Dino Gaudêncio, Martinho Filho e sua equipe de assessores da gravadora Biscoito Fino, reuniu cerca de 13 jornalistas do país inteiro para uma coletiva/individual na Pousada do Amparo em Olinda (PE) onde conversou pessoalmente com cada um dos presentes. Sempre muito falante, autêntico e efusivo em suas exposições de idéias Alceu Valença, portador de uma ponte de safena, é quase o mesmo de anos atrás no que se refere à defesa da música e cultura nordestinas.

Cheio de histórias para contar sobre sua trajetória artística este mourisco, natural de São Bento do Una, cidade localizada na região agreste de Pernambuco, tem agora realizado o sonho de ter um trabalho em que apresenta as influências da cultura moura, surgida no Brasil quando os espanhóis, portugueses, povos da região de Andorra, árabes e marroquinos vindos da península ibérica, aportam no Nordeste e deixam imprimida sua cultura ainda hoje sentida na música, dança, arquitetura e artes plásticas.

Na subjetividade musical de Alceu Valença, o disco, “Ciranda Mourisca”, como ele mesmo diz, são transparências, reflexos, versos, estrelas, areias, galopes, poesias que traz consigo dentro da alma. São coisas, fatos, passagens, objetos, lembranças e pessoas que fazem e fizeram parte de seu imaginário cultural e estão refletidos nas letras das canções.

Pode-se dizer que o disco “Ciranda Mourisca” não tem músicas inéditas, mas registros musicais para serem guardados por aqueles que gostam da música menos industrial da carreira de Alceu. O CD traz 12 músicas que tocaram pouco nas rádios do país no ano em que foram lançadas, a exemplo de “Maracajá”, “Mensageira dos Anjos”, “Loa de Lisboa”, “Molhado de Suor” e “Dente do Ocidente”, e outras conhecidas do público com “Chuva de Cajus”, “Ciranda da Rosa Vermelha”. Todas com um nível de poesia facilmente perceptível e arranjos diferentes sem fugir a linha característica de Alceu Valença. O repertório foi escolhido a dedo entre ele e Yanê Montenegro, sua esposa, da qual rende homenagem no encarte do disco.

Nesta entrevista, de quase uma hora, Alceu Valença, já sentindo a garganta arranhada de tanto conversar com os jornalistas, também fala sobre outras coisas, recita o poema “Branco”, diz como foi seu encontro com Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, fala sobre suas múltiplas abordagens musicais, sobre o projeto Grande Encontro, indústria fonográfica, da experiência de gravar este trabalho pelo selo Biscoito Fino, dentro outros assuntos. Confira a entrevista:

Podemos dizer que está é uma nova fase da sua carreira?
Acho que não. Minha música é múltipla. Eu vou me comunicando e colocando minhas coisas com o tempo. Como por exemplo, eu fui a João Pessoa, fazer um show no bloco de arrasto Muriçocas do Miramar, e não seria um show que farei na Bahia com músicas de carnaval. Faço show para teatro, faço show com músicas de São João, com músicas para meio do ano. São totalmente diferentes uns dos outros. Eis a questão da multiplicidade de minha obra, pois ela vem de uma cultura absolutamente múltipla que é a cultura do nordeste e do Brasil.

Você começou na música quando ainda havia uma divergência, digamos assim, entre a música popular e a música erudita. Como você sente isso hoje? Esses conflitos diminuíram?
Eu não senti muito isso. Sempre fiz minha música. No lado da criação o compositor Bach influenciou a música popular e muitas vezes a música do Bar influenciou a erudita. Às vezes o compositor pega trechos da música erudita e começa a virar popular e outras vezes ouve uma música do Sertão de Caicó que Villa Lobos poderia usar aquilo e compor uma peça erudita. Não vejo isso não. Os Beatles também já cantaram com a Sinfônica, Milton Nascimento também e outros. Eu já cantei com a Orquestra Sinfônica em Campinas (SP), em Brasília (DF). Foi ótimo. Para mim foi à mesma coisa.

Assim como Chico César você estagiou em jornal, escreveu poemas. Nunca pensou em publicá-los em livro?
Fui estagiário de um jornal de Recife. Eu estudei direito e depois fiz um estágio na sucursal do Jornal do Brasil (JB) em Recife. Existe um cara que é o dono de editora que quer editar minhas letras num livro. Ele é professor de literatura. Alguns poemas meus foram publicados no Jornal do Comércio e no Diário de Pernambuco quando eu ainda estudava direito. Depois começou a aparecer o violão na minha vida. Meu início de carreira foi complexa e difícil porque meu pai tinha medo que eu enveredasse para o caminho da música e deixasse de estudar porque tinha vários exemplos na família. E eu queria dar aquele anel de direito para ele, quando na verdade eu não queira fazer direito. Mas eu gostei de ter estudado direito, pois me deu uma visão muito mais ampla das coisas, da vida. No cursinho estudei um pouco de filosofia, pois eu adorava. E o ambiente universitário me deu uma visão crítica.

Como foi tua formação musical?
Eu sou um cara que tem uma formação primal de São Bento do Una, do agreste do sertão, do menino que viu o coco de roda, coco de embolar, que ouviu folia de reis, cantadores na fazenda de meu avô, meu avô cantava, sabia fazer versos de improviso. Tinha um tio que era um poeta erudito maravilhoso chamado Geraldo Valença, que faleceu, publicou apenas um livro chamado “A Rosa Jacente”, numa pequena editora.

Em São Bento do Una, na minha infância e adolescência, a gente escutava Noel, Pixinguinha, Ary Barroso. Minha formação de São Bento tanto foi dentro da cultura nordestina absolutamente, com dessa coisa que veio do Rio de Janeiro, da cultura carioca. Tudo isso se misturou. Quando em vi morar aqui eu morei na mesma rua do diretor artístico da gravadora Rosenblit, o maestro Nelson Ferreira. Eu era menino e admirava ele. Na frente da minha casa morava o poeta Carlos Pena Filho que me fez gostar de literatura. Na minha rua, chamada Rua dos Palmares, que eu chamo de “carnavalodroma”, pois assim como no Rio tem o sambódromo, minha rua era carnavalodroma, por onde desfilavam todos os blocos, tribos de índios caboclinhos, bandas de frevo e tudo que você imaginasse para o centro da cidade do Recife. Isso tudo, meus olhos e ouvidos de menino foram se acostumando e adquirindo. O resto aconteceu tudo de forma intensa e emocional.

Você também tocou com Jackson do Pandeiro não foi?
Toquei no projeto Pixinguinha e em outros lugares. Para mim Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro são dois maiores do Brasil. Não tem comparação um com outro. São duas vertentes musicais de uma mesma cultura. São diferentes e parecidos. Eles tiveram a mesma origem. Cada qual com o seu talento. O talento de Luiz foi para um canto e de Jackson foi para outro. Eu adora os dois e gravei com os dois. E para minha honra os dois eram meus fãs. Luiz Gonzaga saiu de Novo Exú para ver um show meu em Juazeiro no Ceará. Quando perguntei a ele se havia gostado do meu show e da minha banda ele disse: “Isso é uma banda de pífano elétrica”. (imitou). Quando fui à casa de Jackson do Pandeiro mostrar o meu trabalho “Papagaio do Futuro” ele e o irmão dele ficaram olhando e mim e Geraldinho Azevedo espantados, pois tínhamos cabelos cumpridos éramos barbudos. Quando entramos na sua casa ele estava sentado em uma mesa, com os pés para cima e uma mulher cortando as unhas dos pés. Ele com um rádio enorme do lado. Quando eu cheguei disse que tinha uma música para mostrar. Daí ele disse: Que música? Eu disse: Uma música. Começamos a tocar quando ele gritou para a irmã vizinha da casa dele e disse: Ei fulana vem cá ver dois cabeludos tocando. Eles não são cabras safados não. (risos).

Costuma-se dizer que a Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas fazem parte da mesma capitania hereditária. E você falou do coco de roda que é um ritmo muito forte nestes Estados e Jackson foi o homem do coco. Neste trabalho “Ciranda Mourisca” você não inseriu nenhum coco de roda por quê?
Este trabalho tem um conceito que se aproxima mais da ciranda. Juntei músicos que tinham o mesmo universo sonoro. As próprias canções são leves, transparentes, talvez até meio lisérgica, digamos assim. Porque algumas vieram do meu primeiro disco chamado “Molhado de Suor” e outras de outros discos, mas da mesma família. Então não adiantava colocar outras coisas, um xaxado, um baião. Quando a Biscoito Fino me convidou para este projeto eu fiquei meio sem saber que ciranda colocar. O lado mourisco é colocado de uma maneira natural, em que você ouve e não ouve, entendeu o que estou te falando? Ele surge com se fossem lembranças do passado das pessoas que vieram para cá na época do descobrimento.

Você tem dois trabalhos raros o “Ao Vivo em Montreaux” e o “Quadrifônico”. Você nunca pensou em regravar estes dois trabalhos?
Seria uma coisa bacana. Mas, isso tem que ser inserido dentro de um projeto musical. Quadrafônico está ai, só que ninguém escuta mais. O que acontece comigo hoje é que eu não sou dono da minha obra. O problema está aí. Eu sou o artista que passou por quase todas as gravadoras do país. Fui da Copacabana, Som Livre, Ariola, Polygram, RCA, Odeon, Sony, Abril, Indy Records. Eu passei por quase todas as gravadoras. Mas é que para mim interessa mais ser showman do que disco gravado.

Sua música tem abordagens múltiplas. Como é trabalhar com essa variedade musical de gêneros?

Para mim é fácil porque eu ouvi isso de maneira muito natural. Eu sou um pouco isso também e o Brasil também é dessa maneira, múltiplo. Eu não consigo entender certas pessoas que moram no país tão múltiplo e fica procurando referência fora o tempo todo. Eu acho que em determinados momentos você pode fazer uma mistura aqui e outra ali, mas não obrigatoriamente. Eu faço blues esporadicamente. O fundamental é a nossa própria raiz. E eu tive a sorte de não ter sido comido pela mídia, pois ela é um perigo, sobretudo, quando ela é manipulada pelo dinheiro. Se tudo na música for negócio ela deixa de ser arte e eu prefiro ser artista.

Você passou um tempo afastado do cenário musical brasileiro não foi?
Eu me afastei porque quis. Em determinado momento uma gravadora queria que eu gravasse uma coisa que não queria. E o que eu queria era gravar minha música do meu jeito.

Na década de 1980 os artistas tinham que obrigatoriamente gravar um disco não era?
Tinha porque havia um mercado consumidor e tava correto. Para mim era um prazer gravar. Não era obrigação. Eu gravava um ou até dois discos. Agora essa coisa de querer gravar um disco atrás do outro para ganhar dinheiro nunca foi a minha tônica. Eu tinha músicas para gravar e eu gravava era apenas isso. A nata da música brasileira tinha uma ideologia. Na década de 1970, na indústria do disco tinha um maestro. Depois os empresários da indústria da música passaram a ser pessoas que vendiam leite, sabonetes, carros, calças jeans. Virou só negócio e mais nada.

Alceu é até inevitável não perguntar, mas e o projeto Grande Encontro acabou se tornando um Grande Desencontro?
Não porque eu ainda sou um grande amigo de Geraldo Azevedo, de Zé Ramalho e de Elba Ramalho. Gosto dos três. O Grande Encontro era uma maneira de comemorar o sucesso de alguns anos da gente junto. Devolvendo e ouvindo do público a resposta da tua música. Eu gostava principalmente da forma como foi o primeiro com violões. Cada um tem a sua opinião e eu no segundo Grande Encontro já estava insatisfeito com a gravadora. Tinha me desentendido com o cara de lá. Mas, em nome dos amigos resolvi continuar. Eles quiseram colocar uma banda para acompanhar. Eu achei que não era bacana. Neste mesmo período fui contratado pela gravadora Som Livre e fiz um disco chamado “Sol e Chuva”, que era meio acústico. Eu me sentia melhor quando éramos nós quatro com violões no palco. Depois a gravadora não me liberou alegando que eu era artista exclusivo dela, que isso estava no contrato e não me liberou para gravar em outra gravadora. Continuo amigos de todos, sem problema.

Poema recitado por Alceu Valença na entrevista:

Branco (Ameno?)
Ouve-se uma música fria, fina, distante, quase imperceptível
O ambiente é branco e a naftalina nauseante
O teto branco, o piso branco e a porta certamente concorda com o ambiente
Não se deve olhar para baixo

A moça caiu do arranha-céu quando olhava o formigueiro aos seus pés
O casal de acrobatas que no alto, que na reta relegou experiência não via íris no chão

Por que não presumir alvidez do assoalho?
Observada a música deve ser um quase nada se usada na escala gráfica
Mas o ambiente é por demais branco para gráficos econômicos

A tarde é quente
Os cobradores tomam café pequeno
A tarde é quente e nosso clima ameno
A tarde é quente e a moça com simples resfriado
A tarde é quente
O lenço é branco onde marca de bordado
A tarde é quente
Que o sol é intenso
Que a água é incolor
Que o incolor é branco
Que o branco não é branco
As cores estão misturadas

Adriana Crisanto
Repórter
adrianacrisanto@diariosassociados.com.br
adrianacrisanto@gmail.com
Fotos: Antônio Melcop.
*A repórter foi convidada pelo Selo/Gravadora Biscoito Fino.